sexta-feira, 20 de julho de 2007

JOSÉ RAMOS TINHORÃO

ilustração: Lauro Ribeiro da Silva (Rib)


JOSÉ RAMOS TINHORÃO: A CRÍTICA DA "MODERNA MPB"

Herdeiro, em parte, do pensamento folclorista que analisamos, José Ramos Tinhorão ocupa um lugar destacado na historiografia da música brasileira, não só pela sua grande produção bibliográfica, como também pela sua verve polemista. Tinhorão ganhou fama (e desafetos) ao se pautar por um projeto historiográfico que buscava delimitar (radicalmente, diga-se) as marcas de origem da música brasileira, num momento em que a Bossa Nova apontava mais para uma ruptura, ainda que buscando inspiração no "morro" (como ocorreu na sua vertente nacionalista, com Carlos Lyra, Nara Leão e Vinicius de Moraes) ou em Orlando Silva e nos sambistas antigos (como podemos notar nos álbuns de João Gilberto). A idéia básica, quase um leit-motif que perpassa toda a obra de Tinhorão, está em definir um tipo de nacionalismo com base num pensamento folclorista que enfatiza a ligação direta entre "autenticidade" cultural e base social (grupos de "negros e pobres"). Sob essa ótica, há uma preocupação em separar o que é popular e o que é folclórico: a música folclórica seria aquela de autor desconhecido, transmitida oralmente de geração em geração; a música popular, ao contrário, seria a composta por autores conhecidos e divulgada por meios gráficos (ou seja, através da gravação e venda de discos, partituras, fitas, filmes etc), cujo lugar social são as cidades industrializadas. Enquanto as criações populares (individuais) se mantiveram organicamente ligadas ao universo "folclórico" (coletivo), tal como é definido por Tinhorão, a música brasileira manteve um núcleo de autenticidade, sendo efetivamente "popular e brasileira". Na medida em que as canções passaram a ser direcionadas para o rádio, a partir dos anos 30, e, nos anos 60, para a TV, ela foi dissociando-se da sua base social "originária". Nesta linha de argumentação, a Bossa Nova representava o momento máximo da ruptura com as origens, logo, com a autenticidade. Em seus livros iniciais, abertamente polemistas, Tinhorão construiu verdadeiros manifestos contra a hegemonia da Bossa Nova e da "Moderna" MPB (hegemonia consolidada em torno dos programas de televisão) na nova audiência musical das grandes cidades brasileiras. Suas afirmações eram claras: No caso especial do Brasil, a realidade desse mecanismo de dominação cultural [o mercado internacionalizado ] gerou uma intervenção contínua no processo evolutivo da música urbana, tornando-se mais forte à medida que a classe média se foi apropriando dos gêneros criados pelas camadas populares das cidades que se nutria do material folclórico estruturado após quatro séculos de vida rural. Nesse raciocínio, um outro grupo social ("classe média branca e internacionalizada") se apropriou dos materiais originais da música brasileira, diluindo-os em estruturas e ornamentos ditados pela indústria cultural internacionalizada, cuja matriz se encontraria fora do espaço do "nacional-popular". Tinhorão defende a tese da expropriação da música popular pela classe média, cuja conseqüência inevitável foi a perda de referenciais de origem. Historicamente, Tinhorão destaca dois momentos cruciais, onde este processo de expropriação está bem marcado: o surgimento do grupo de Vila Isabel, nos anos 30, e a Bossa Nova, no final dos anos 50. Este último movimento, mais do que se apropriar do material musical popular, deformou-o num nível tão elevado, que o teria diluído no jazz. Essa é a sombria conclusão de Tinhorão, na contracorrente da euforia gerada pela renovação da música brasileira, nos anos 60, entre artistas e intelectuais de esquerda. Diz ele: O amoldamento progressivo da chamada música do meio do ano ao gosto internacional, desde o samba-canção abolerado da década de 40, tinha conseguido descaracterizar por tal forma o que ainda existia de ligação com as fontes de tradição popular brasileira, que a música urbana, ao nível da classe média ia entrar numa nova fase: a de procurar no chamados 'sons universais' propostos pela indústria do disco, a fim de obter o alargamento do mercado em nome da cultura de massa". A partir dos anos 70, os livros de José Ramos Tinhorão procuraram incorporar uma periodização marcada pela longa duração e por um aporte documental extenso. Mas o tema da expropriação cultural continuou sendo o eixo da sua argumentação, dando um tom de denúncia à sua obra, direcionada contra os rumos da chamada MPB (com maiúsculas), tida por ele como um produto da classe média internacionalizada e voltada para os interesses das grandes gravadoras multinacionais. Nesse sentido, sua obra foi a ponta de lança de um pensamento ancorado no folclorismo urbano, cujo eixo era a atuação de homens da imprensa (sediados sobretudo na imprensa carioca) e agitadores culturais. O tema da expropriação cultural gerou outros trabalhos. Entre eles destacamos o pequeno livro de Muniz Sodré, publicado nos anos 60 e reeditado recentemente. Sodré trabalhou com a categoria da expropriação, mas a explicava do ponto de vista mais estrutural, como lógica de um processo produtivo que deu à classe média poder econômico para influenciar a indústria fonográfica. Apesar deste processo de expropriação, Sodré resgatou a importância do núcleo da sincopação, como elemento musical-cultural que garante uma identidade do samba, mesmo após décadas de mudanças impostas pela indústria fonográfica. Neste sentido, o samba, mais do que um gênero puro, seria um gênero-síntese, processo dinâmico de fusão de elementos negros, baseado na síncopa, que funcionaria como um princípio estruturador básico. Muniz Sodré destaca a importância do negro na formação do samba e seus vínculos religiosos, que se mantém como marca de origem. O samba é visto então como um movimento de continuidade e afirmação dos valores culturais negros, uma cultura não oficial e alternativa, que seria uma forma de resistência cultural ao modo de produção dominante da sociedade carioca do início do século XX. Sodré chama a comercialização do samba na década de 20, após o sucesso de Pelo Telefone, de "diáspora africana no Rio de Janeiro". Uma diáspora que manteve elementos de origem, embora não mais concentrados num lugar social específico. Trabalhando ainda com o conceito de expropriação cultural do negro, aplicada ao universo específico das Escolas de Samba e dos desfiles de carnaval, a socióloga Ana Maria Rodrigues defende a tese de que o "branqueamento" e "usurpação" das festividades afro-brasileiras representou mais uma estratégia ideológica de afirmação da "democracia racial brasileira". A autora chega a uma conclusão diferente de Sodré, pois enfatiza que a estratégia da "sociedade branca dominante" foi eficaz e enfraqueceu o caráter étnico das associações carnavalescas dos negros (e no limite, do próprio samba, como gênero musical), impedindo que elas se tornassem elementos de construção de uma consciência negra. Mesmo assim, Ana Maria Rodrigues reconhecia que, apesar de tudo, as Escolas de Samba "sobrevivem ainda como celeiro de padrões culturais negros e [ ao mesmo tempo ] revelam estes mesmos padrões alterados e transformados em produtos culturais acabados". O que importa, para o nosso ensaio, é destacar que apesar de afirmar que não pretende "estabelecer a propriedade atual do samba ou querer que exista um fechamento de tais festas", Ana Maria chega a falar em uma "virgindade" das primeiras manifestações carnavalescas dos negros, tendo o samba ocupado um lugar central na "pureza" destas festividades. A imagem da origem sócio-espacial do samba, tão forte em nossa literatura sobre o tema, é incorporada in totum pela autora: "É nas favelas que o samba tem oportunidade de evoluir, de se fortificar, em razão das características geográficas das favelas e suas formas peculiares de edificações, dificultando, automaticamente, a chegada de estranhos". Se o tema da pureza étnica/social da origem do samba, de uma forma ou de outra (mais aberto aos contatos culturais ou não), permanecem fortes, sobretudo numa dada memória social de matriz nacionalista, parece-nos que, ao longo dos anos 80, ela começou a perder vigor nas análises propriamente acadêmicas sobre o tema. Em relação à questão específica da "pureza" das identidades negras em torno das práticas musicais do início do século, os trabalhos de Roberto Moura e Mônica Pimenta Velloso mostram como os espaços geridos pelas "tias baianas", nas casas, nos terreiros ou nos bairros, eram o epicentro de relações culturais e sociais muito complexas, por onde circulavam diversos grupos e identidades. Nestes territórios de encontro, em que pese todo o peso da discriminação racial e social, é que se constituiu um idioma musical igualmente complexo e entrecruzado. Elementos brancos e negros, práticas de resistência e de clientelismo, sonoridades africanas e européias, enfim, elementos díspares encontravam nestes espaços um território comum, ainda que efetivamente sintetizados sob o tempero de uma cultura afro-brasileira e negra.

Um comentário:

Rodrigo Azevedo disse...

olá amigos do blog.

Acabo de ler este post sobre o Tinhorão e me interessei muito em sua obra.
Gostaria de saber se alguém tem o email ou o contato dele.

Agradeço desde já.

Obrigado

Rodrigo.